quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Problemas não transmissíveis são maiores causas de mortalidade em multidões



Milhões de fiéis muçulmanos na Kaaba, em Meca, na sagrada peregrinação anual: em 1985, cerca de mil pessoas morreram devido ao excesso de sol (FAEZ NURELDINE)
Milhões de fiéis muçulmanos na Kaaba, em Meca, na sagrada peregrinação anual: em 1985, cerca de mil pessoas morreram devido ao excesso de sol
Carnaval, festivais de música ou eventos esportivos, como as Olimpíadas e a Copa do Mundo de Futebol, são situações que reúnem milhares de pessoas em um mesmo local. Para se arriscar a entrar nessas aglomerações, contudo, é preciso ter muito cuidado. Qualquer momento de pânico pode desencadear uma correria desenfreada, que normalmente resulta em pessoas pisoteadas. Ou, quando a festa é feita em lugar aberto num dia de sol, o indivíduo pode ter insolação. Esses dois problemas, classificados como "não transmissíveis", são as principais causas de morte e doenças em lugares onde há multidões, o que os tornam questões de saúde pública.

A dimensão desses problemas foi revelada por pesquisadores da Universidade de Zurique, na Suíça, e apresentada na última edição da revista Lancet Infectious Diseases. De acordo com o estudo, nos últimos 27 anos, cerca de 7 mil pessoas morreram e 14 mil se feriram em pisoteamentos. Um dos casos que envolve pessoas pisoteadas mais lembrados é a tragédia de Hillsborough, ocorrida em 1989, em um jogode futebol entre o Liverpool e o Nottingham Forest. Durante a partida da semifinal da Copa da Inglaterra, cerca de 5 mil torcedores sem ingresso forçaram a entrada no estádio de Hillsborough, em Sheffield. A polícia acabou abrindo os portões e os torcedores entraram no lugar, esmagando quem estava nas arquibancadas e perto da grade. No total, 96 pessoas morreram e 200 ficaram feridas no episódio.Embora tenha dados menos precisos sobre a incidência de morte por insolação %u2014 nome popular, que abrange tanto os casos mais simples quanto os mais severos, clinicamente denominados intermação %u2014, já que nem sempre associa-se a morte à situação médica que a precedeu, os cientistas citam o caso da peregrinação a Meca de 1985, em que 2 mil peregrinos muçulmanos sofreram com a intermação e, poucos dias depois, metade delas morreu por isso. "Apesar de haver mais interesse científico nas doenças transmissíveis associadas a multidões, a mortalidade é mais importante nos casos não transmissíveis de doenças e acidentes. Contusões triviais e patologias não infecciosas são os motivos mais frequentes para que as pessoas sejam levadas para as salas de emergência", determina o epidemiologista Robert Steffen, autor da pesquisa e membro do Centro de Medicina de Viagens da universidade suíça, em entrevista ao Correio.

Para evitar esses problemas, Steffen cita uma série de intervenções que considera eficientes. "O aperfeiçoamento da infraestrutura desses locais vai reduzir o risco de tumultos, por meio da eliminação de espaços que concentrem pessoas demais. Em festas ou apresentações com temperaturas extremamente altas, especialmente os idosos devem ser instruídos a diminuir a exposição ao calor e a beber muito líquido." Quando possível, o epidemiologista sugere a instalação de aparelhos de ar condicionado nos ambientes. Ele completa que se deve tomar cuidado com doenças cardiovasculares ligadas ao estresse emocional e com o abuso de bebidas alcoólicas, que também podem transformar festas em tragédias.

Pisoteados

Ser esmagado ou pisoteado é, normalmente, a maior consequência de tumultos. Segundo o major Mauro Sérgio de Oliveira, chefe do Centro de Comunicação Social do Corpo de Bombeiros, por mais controlado que seja o ambiente do evento, esse tipo de situação pode acontecer. "Quando isso ocorre, prestamos os primeiros socorros, que é imobilizar a vítima para evitar ou minimizar lesões. Em seguida, levamos direto para o hospital", descreve. "Nossa função é estabilizar o indivíduo e manter seus sinais vitais, conversando com ele para que ele fique acordado. Conversar também é importante para colher informações relevantes, como o contato de parentes e dados que ajudem na hora do tratamento", acrescenta.

Os traumas ortopédicos mais comuns nesses casos são fratura de costelas, dos membros inferiores e da pélvis. O ortopedista Paulo Lobo Júnior, membro do Comitê de Trauma Ortopédico da Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia, explica que fraturas na região torácica são as mais perigosas, pois pode "haver perfuração dos pulmões, que podem causar pneumotórax %u2014 acúmulo anormal de ar entre o pulmão e a membrana que reveste o tórax, a pleura".

Se a situação não é controlada inicialmente, há a possibilidade de que o ar comprima outros órgãos e leve à morte. "No esmagamento da pélvis, há chances de que ocorra o rompimento do baço e dos rins. Em casos mais raros, de traumas graves na cabeça, o paciente pode ter edema cerebral ou hemorragia", relata o médico. Em um curso oferecido pela Federação Internacional de Futebol Associado (Fifa), Júnior aprendeu que em casos de catástrofe, nos quais multidões começam a correr descontroladamente, a orientação é de que a pessoa, se cair, fique de lado, com os braços colados ao corpo, a fim de proteger o tronco.

Calor excessivo

Mortes por exposição intensa ao sol e ao calor acontecem devido ao aumento excessivo da temperatura do corpo, que pode levar à desidratação e à intensificação de doenças preexistentes, como arritmias cardíacas, mal funcionamento das artérias e problemas renais. Tudo isso é consequência da intermação, afirma o dermatologista Lenin Velozo Pascoal, da clínica Prima. "O organismo chega a temperaturas muito altas, acima de 40,5ºC, e, para controlar esse desequilíbrio, perde líquido para o ambiente. Isso faz com que a pessoa fique desidratada", explica, destacando a necessidade de atendimento rápido para que a pessoa seja levada ao hospital.

"Na insolação propriamente dita, é muito raro que alguém morra. Em casos extremos, ela causa queimaduras de segundo grau e desidratação, que levam a pessoa a ser internada", esclarece Pascoal. "Nessas situações menos graves, hidratar-se com a ingestão de líquidos e soro caseiro pode reverter o processo de perda de água para o ambiente. Se houver queimaduras, o médico pode recomendar o uso de anti-inflamatório local", acrescenta a dermatologista Luciana Vasconcelos, das clínicas In Pele e Unipele. Para evitar ambas as situações, os médicos indicam hidratar-se sempre, não se expor ao sol nos horários de pico e usar protetor solar.

De maior gravidade

Geralmente confundida com a insolação, a intermação apresenta sintomas semelhantes, como náuseas, tontura, febre e sensação de boca seca. Na intermação, contudo, a temperatura do corpo chega a mais de 40,5ºC e acontece mais frequentemente entre atletas e pessoas em locais quentes e úmidos, mas não entre quem fica dentro do mar ou de piscinas, como ocorre em grande parte dos casos de insolação. Se não tratada rapidamente, pode causar sequelas, principalmente no cérebro.

A ajuda da tecnologia

A tecnologia também pode estar a serviço da saúde em grandes eventos que reúnam milhares de pessoas vindas dos mais diversos lugares. Dois estudos publicados na última edição da revista científica Lancet Infectious Diseases mostram que modelos de computador e softwares integrados que ajudam a compreender o comportamento das multidões podem ser usados para evitar que doenças infecciosas sejam transmitidas em aglomerações. Na pesquisa desenvolvida na Universidade de Bristol, no Reino Unido, os cientistas descreveram um conjunto de modelos de dinâmica de multidões e outro de doenças infecciosas que, se combinados, apresentam padrões de mobilidade para servir como base da identificação do alastramento de doenças.

O conjunto agrega vídeos, GPS e rastreamento de celular para identificar pontos de congestionamento e detectar onde é necessário aplicar estratégias de administração de multidões. O autor da pesquisa, Anders Johansson, especialista em engenharia de sistemas da faculdade britânica, explica seu trabalho: "Nossos modelos simulam com mais precisão os padrões de movimento e interação de humanos, especialmente durante reuniões em massa %u2014 como no carnaval, em shows, eventos esportivos ou religiosos". Tendo essas informações, afirma Johansson, é possível testar diferentes tipos de intervenções de saúde pública para evitar as infecções, como campanhas de vacinação e quarentena. 
A outra pesquisa, feita por médicos do Hospital St. Michael's, em Toronto (Canadá), destaca que agregar sistemas de vigilância aos que traçam a movimentação da população global por voos comerciais também ajuda a administrar as multidões e a fazer com que as autoridades se preparem para reagir às ameaças de doenças infecciosas. "É uma plataforma que usa quatro sistemas integrados. Um deles é o monitoramento de discussões em fóruns e mídias sociais na internet, que observa como as doenças infecciosas estão emergindo. Outro é o sistema de vigilância de aeroportos e de locais de eventos, como estádios e ginásios, que podem ser acompanhados pela internet. Há, ainda, os relatórios governamentais sobre infecções, que são muito precisos, informam o que acontece ao redor do mundo e funcionam em nove idiomas. O último é o estudo de padrões globais de viagens, para ver por onde as pessoas andam e como as doenças se espalham", enumera Kamran Khan, cientista clínico do Centro de Investigação de Saúde Interna do Hospital St. Michael's e líder da análise.

Antecipação

Essa plataforma identificaria surtos de infecção e a localização desses acontecimentos. Os pesquisadores usaram essa abordagem nas Olimpíadas de Inverno de Vancouver, em 2010, e identificaram que a maioria dos passageiros vinha de 25 cidades. Com isso, focaram a vigilância de surto de problemas de saúde como gripe e meningite meningocócica nesses locais, para monitorar possíveis ameaças. "Esperamos que nossa avaliação seja aplicada nos Jogos Olímpicos de Londres, que acontece neste ano. Já observamos que, em julho, quando acontece o evento, é quando há o pico de viagens para a capital britânica. Desse modo, teremos uma base importante para antecipar o surgimento de epidemias de infecções antes que elas ocorram", afirma Khan.

A estimativa, segundo o pesquisador, é que a maior parte do público viaje de Nova York, nos Estados Unidos, onde há alta incidência de caxumba; de Berlim, na Alemanha, onde uma doença infecciosa comum é o sarampo; e da capital indiana, Nova Délhi, em que foi detectada a presença do gene NDM -1, que torna as bactérias resistentes a antibióticos. (TL)

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